Em meados de 1952 deram entrada no Forte de Peniche os réus do célebre Processo dos 108 (o maior de sempre).
Durante o julgamento, em 1948, muitos dos réus tinham sido condenados a penas suspensas mas, depois de vários recursos e por artes dos juízes do Tribunal Plenário, todos passaram a prisão efectiva e ainda sobrecarregados com as famigeradas medidas de segurança (forma encontrada por Salazar para manter indefinidamente encarcerados os que não desarmavam da luta contra a ditadura fascista).
Lá, juntámo-nos a camaradas que, na grande maioria, contavam já no seu currículo com alguns anos de prisão.
Não foram precisos muitos dias para comprovarmos que não havia exagero no que nos diziam, cá fora, familiares dos presos que lá se encontravam.
Os guardas, salvo uma ou outra excepção, eram verdadeiros carrascos. O seu chefe – indivíduo cruel e frio – estava intimamente ligado à PIDE.
O director, ex-capitão do exército, era uma pessoa despersonalizada e já xexé, que sancionava todas as patifarias do responsável pelos carcereiros.
A assistência médica e medicamentosa estava a cargo de um clínico sem um mínimo de personalidade. O enfermeiro era cínico, fingido e estava superiormente autorizado a alterar e mesmo a negar a medicação aconselhada pelo médico.
Os castigos eram tantos que, mesmo com os três segredos ininterruptamente ocupados, levariam anos a ser cumpridos (com a greve que, adiante, descreveremos, foram anulados).
Aquilo a que os carcereiros chamavam disciplina, era opressão, era verdadeira crueldade.
Cabe aqui contar como toda uma Sala foi castigada ( a Sala 3, que estava isolada das outras por serem os seus ocupantes considerados “os maus”).
Uma noite (entre as 23 horas e meia-noite), um companheiro nosso, o João Lopes, de Viana do Castelo, adoeceu gravemente. Pedimos ao soldado da GNR que fazia vigia à nossa Sala que providenciasse no sentido de chamarem o enfermeiro. Este pedido foi feito por vários vezes e sempre o GNR o comunicou sem resultados. O nosso companheiro sofria imenso (os próprios guardas estavam indignados perante esta situação).
Com a manhã já bastante adiantada chegou, por fim, impante e com ares de provocação, o enfermeiro. Reprovámos o seu comportamento. Foram-lhe dirigidas algumas palavras um tanto azedas a que ele respondeu com novas provocações.
Resultado: no dia seguinte foi lida uma Ordem de Serviço que dizia terem sido todos os ocupantes da Sala castigados com 5 e 10 dias de Segredo (alguns camaradas que tinham feito o seu turno de acompanhamento ao doente dormiam a sono solto, portanto não tinham tomado parte na discussão com o enfermeiro mas, mesmo assim, não se livraram do castigo).
A alimentação era péssima, mas em grande quantidade. Aos carcereiros convinha-lhes muita comida (quase sempre ou na maior parte dos dias imprópria para consumo) pois os restos – e que restos! – eram vendidas a particulares, para engorda de porcos.
E aqui vamos chegar ao motivo porque escrevo esta tentativa de estória que é, ao mesmo tempo, uma sentida homenagem a um querido amigo já falecido – o João Garcia Labaredas.
A determinada altura, devido a uma inflamação intestinal, fui isolado num quarto para que não pudesse comer alguma coisa que me fizesse mal. A minha dieta era ao almoço e ao jantar, arroz ou massa com cavalas ou sardas cozidas ( e já amareladas!) Daí, desse quarto, assisti ao que deu ocasião à maior greve de fome até então levada a cabo por presos políticos.
Camaradas a dieta como eu, recusavam-se a levar para ser cozinhada, carne que, via-se pelo tom azulado, estava estragada.
Depois de uns minutos de discussão sobre o assunto, os presos propuseram não recusar a sopa nem o pão, mas não comeriam a carne. A proposta foi rejeitada pelo chefe dos guardas que proferiu provocações e ameaças. Então, os presos presentes, declaram que iriam para a greve de fome.
Eu fui transferido para a Sala 4 onde se encontravam conterrâneos meus.
Foi a mim que, depois da descrever o que se passara, coube a tarefa de apresentar aos camaradas coucenses a proposta de greve. Imediata e simultâneamente o Arnato Brás e o Joaquim Castanha disseram estar de acordo, que fariam a greve: vamos p`ra ela!
Em seguida, o João Labaredas diz em voz bem segura: Tenho medo, mesmo muito medo! Numa greve de fome por tempo indeterminado há perigo de mortes; mas eu adiro e irei até ao fim!
Estas palavras jamais as esquecerei, pois o João disse-nos o que nós, por vaidade de confessarmos que tínhamos medo, não fôramos capazes de afirmar.
Passados cinco a seis dias havia amigos que, por debilidade física e moral, tinham caído à cama.
Então era bonito de ver o João Labaredas, de cama em cama, a animar os companheiros doentes. Contava-lhes anedotas, passagens da sua vida de marçano em Lisboa, da sua estadia como expedicionário nos Açores e declamava monólogos alegres, que muitos sabia de cor!
O Homem que teve a coragem de dizer que tinha medo tudo fez para levantar o moral dos mais débeis e, sem dúvida, o seu contributo foi determinante para que na Sala não houvesse, sequer, uma desistência!
João Camilo Pereira Rosa
(1920-2001)
Passado para o papel Novembro 95, Couço
3 comentários:
Mostra bem que em Portugal houve Fascismo! É impossível negá-lo!
Mostra bem que estes resistentes eram pessoas extraordinárias e que estes sim colocavam primeiro o país, o povo português, a Luta e só depois, eles próprios, o seu bem-estar. Foi com eles que iniciamos para o 25 de Abril. Agora nem todos temos alcance para percebermos isto. Porém existe aqueles que percebem mas não querem perceber, preferem viver de olhos fechados para a verdade e viver na mentira! Porque é desta que vive o Capital! E é deste que eles vivem!
Obrigado Pedro por nos dares a conhecer uma história que eu desconhecia, do grande Homem (merecedor de uma Homenagem!), Resistente Antifascistas, Comunista que foi o Camarada João Camilo.
«Há homens que não se definem, que apenas se evocam em sentida e reverente homenagem. O João Camilo é um desses e a melhor homenagem que lhe poede ser prestada é continuarmos a levantar a bandeira do seu exemplo.»
«Lutar, Lutar sempre, pela liberdade, pela democracia, pela dignidade e pela justiça foi o lema de toda uma vida de João Camilo Pereira Rosa»
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