"O que diferencia «uma mudança reformista» de «uma mudança não reformista» num regime político, é que no primeiro caso o poder continua fundamentalmente nas mãos da antiga classe dominante e que no segundo o poder passa das mãos dessa classe para uma nova."

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Matar Bin Laden, ressuscitar a Al-Qaeda

O que fica claro é que o esforço para ressuscitar a todo o custo a Al-Qaeda pretende liquidar os processos de mudança iniciados há quatro meses no mundo árabe.
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Uma das grandes surpresas que os levantamentos populares no mundo árabe suscitaram foi terem deixado momentaneamente fora de jogo todas as forças islamistas e muito em particular, está claro, a mais suspeita e extremista – a Al-Qaeda -, marca comercial de conteúdo obscuro largamente instrumentalizada para apoiar ditadores, reprimir todo o tipo de dissidência e desviar as atenções dos verdadeiros campos de batalha. Com orientações de amplo espectro, como a aspirina, Bin Laden reaparecia de cada que era necessário reacender a “guerra contra o terrorismo”; e era mantido vivo para agitar o seu espantalho em disputas eleitorais ou para justificar leis de excepção. Desta vez a situação era demasiado grave para que não fosse utilizado por uma derradeira vez, numa orgia mediática que chega a eclipsar o casamento do príncipe Guilherme e produz repercussões muito inquietantes no mundo inteiro.

Quando parecia relegada ao esquecimento, definitivamente arrumada pelos próprios povos que se supunha apoiá-la, a Al-Quaeda reaparece. Em nome dessa sigla um grupo desconhecido assassina Arrigoni na Palestina; dias depois, em plena efervescência dos protestos anti-monárquicos em Marrocos, explode uma bomba na praça Yama el Fna de Marraquexe; agora reaparece Bin Laden, já não vivo e ameaçador, mas em toda a glória de um martírio planeado, estudado, cuidadosamente encenado, um pouco inverosímil. “Fez-se justiça”, diz Obama, mas a justiça reclama tribunais e juízes, procedimentos judiciais, uma sentença independente. George Bush foi mais sincero: “É a vingança dos EUA”, disse. “É a vingança da democracia”, e milhares de democratas estado-unidenses sapateiam de alegria em frente à Casa Branca, pulando com bárbara euforia sobre caveiras e tíbias. Mas democracia e vingança são tão incompatíveis como a pedagogia e o infanticídio, como o alfabeto e o solipsismo, como o xadrez e os jogos de azar. Os EUA apreciam os linchamentos, sobretudo em vista aérea, porque sabem que o seu poder é superior ao dos princípios. “O mundo sente alívio”, afirma Obama, mas ao mesmo tempo alerta para “ataques violentos em todo o mundo após a morte de Bin Laden”. Alerta? Avisa? Promete? Que alívio pode produzir um assassínio que – é dito em simultâneo – põe em perigo aqueles mesmos que presumivelmente pretende salvar?

A ocasião era esta. A Al-Qaeda volta a dominar o palco; A Al-Qaeda volta a saturar o imaginário ocidental. Ao mesmo tempo que o alegado cadáver de Bin Laden é lançado ao mar, o fantasma de Bin Laden apodera-se de todas as lutas e de todos os desejos de justiça. Cumprir-se-á a previsão de Obama: haverá ataques violentos em todo o lado e o mundo árabe-muçulmano voltará a ser um alvoroço de fanatismos e decapitações, queiram ou não queiram as suas populações. Entre democracia e barbárie os EUA não hesitam: a barbárie adapta-se muito mais ao “sonho americano” (e, naturalmente, ao delírio israelita).

Não sabemos se Bin Laden foi realmente morto; o que fica claro é que o esforço para ressuscitar a todo o custo a Al-Qaeda pretende liquidar os processos de mudança iniciados há quatro meses no mundo árabe.

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