Os centros de produção e difusão do que se quer consumido pela opinião pública mundial como verdade têm, reconheça-se, um poder arrasador. Um poder de irradiação capaz de, em minutos, reproduzir à escala planetária, com honrosas excepções, o que previamente determinaram. Um poder de criar factos, sejam os agora denominados "pós-verdades" ou "factos alternativos", capaz de transformar as mentiras preconcebidas em verdades indesmentíveis. E esse poder, talvez o mais demolidor de todos, de levar milhões, incluindo os que consomem ou transformam notícias, a alienar a sua capacidade de se interrogarem, questionarem e reflectirem sobre o que lhes é servido para consumo. E, ainda mais inquietante, a rendição perante o que se lhes afigura imparável, a adequação do seu posicionamento ao que consideram render uns quantos votos futuros, a perda da coragem necessária para pelo menos duvidar ou contrapor. Sem negar o direito de cada um à produção do seu próprio juízo sobre o mundo e os factos que o rodeiam, seria útil trazer à memória que na história da humanidade são suficientes os exemplos que mostram no que dá alienar o dever de cada um a duvidar.
Khan Sheikhoun, na província de Idlib na Síria, é um caso desses. Mesmo descontando a narrativa de anos que sobre aquele Estado se tem escrito e ouvido, bastaria ter acompanhado o conteúdo informativo das horas anteriores à agressão dos Estados Unidos para se saber que ela não só já estava predeterminada como seria vendida por esse mundo fora como legítima e justificável. O guião não tem novidade. Já havia sido ensaiado com as infundadas acusações contra o Iraque ou a Líbia.
Ninguém, corrigindo, quase ninguém será insensível ao recurso de armas químicas ou nucleares e não condene o seu uso, seja em teatros de guerra seja, de forma mais desprezível, sobre populações. Mas aproveitar esse legítimo sentimento para construir um conjunto de factos apresentados como a verdade que se quer difundir só pode suscitar legítimas interrogações. A gravidade decorrente do seu uso exige um apuramento sério, a responsabilização dos seus autores e a devida condenação. Não a sentenciação apriorista a partir de quem quer fazer disso um elemento estratégico dos seus projectos de dominação. Tanto mais que em matéria de uso talvez seja necessário trazer à memória Hiroxima e Nagasáqui ou o Vietname para se ficar conversado. Integrando aqueles, ainda muitos, que continuam a recusar assumir como verdade tudo o que lhes põem à frente, por convicção, por algum resguardo de inteligência ou, vá lá, por mera ingenuidade de se interrogarem sobre as coisas, aqui ficam perguntas óbvias. Como é que os grupos terroristas que combatem na Síria para destruir a integridade daquele país são, comprovadamente, detentores de arsenal químico; por que razão na Síria, os mesmíssimos grupos terroristas ligados ao Daesh são ali apresentados como "rebeldes", "opositores ao regime" ou "combatentes da liberdade", e no Iraque identificados por "grupos extremistas do estado islâmico"; por que motivo massacres de dezenas de civis e crianças como os perpetrados pela aviação norte-americana em Raqqa se resumem a danos colaterais e não a crimes contra a humanidade; que critérios levam a divulgar a batalha de Mossul no Iraque apoiada pelos Estados Unidos como uma acção libertadora da opressão extremista e a batalha pela recuperação de Allepo pelos sírios com o apoio da Rússia, contra o mesmo inimigo, vista como crime humanitário.
Descida a cortina nesta boca de cena de um teatro que nos querem impingir como inquestionável, exercitada que foi por Trump aquela prova de força e impunidade que continua a povoar a Casa Branca, retenha-se a súbita conversão dos que até ontem abominavam - para lavar os seus próprios currículos e dar ar de democratas - o actual presidente dos EUA. Registe-se o entusiasmo do ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, enaltecendo "a evolução muito positiva de Trump". E sobretudo retenha-se, a partir do júbilo nas hostes "europeístas" da agressão dos EUA à Síria, o que há poucos meses Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, afirmou sobressaltado, inscrevendo Trump na lista de "ameaças à União Europeia", aquilo que segundo ele parecia "pôr em causa setenta anos de política externa americana". Descontada que seja a ignorância histórica que a afirmação revela - desmentida pela inalterável componente agressiva da política norte-americana ao longo de todo este período (recorde-se face a eventuais lapsos de memória, idêntica agressão à de 6 de Abril desencadeada por Obama contra a base síria de Deir ez-Zor em Setembro passado) - o que dela se releva é o que significa de adesão aos ventos de guerra que alguns continuam a insuflar. Sempre em nome dos "direitos humanos" mas com os olhos numa ambicionada dominação geoestratégica e as mãos postas na pilhagem de recursos alheios. Está pois feito meio caminho para que Trump, a exemplo de Obama, receba o Nobel da Paz.
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